“Vencer esta pandemia exige integração de forças e solidariedade”

Fernanda Marques 23 de abril de 2021


Coordenador de Integração Estratégica da Fiocruz Brasília faz balanço de um ano da Plataforma de Inteligência Cooperativa com a Atenção Primária à Saúde (Picaps)

Um propósito comum e urgente: o enfrentamento da Covid-19 no Distrito Federal. Organizações e pessoas com potencial de contribuir a partir de suas diversas competências e experiências: pesquisadores, docentes, estudantes, gestores, trabalhadores da saúde, moradores dos territórios. Um projeto: uma plataforma que pudesse articular os esforços e servir de base para a tomada de decisões e para intervenções na realidade na direção de territórios mais saudáveis e sustentáveis. Surgia assim, em 29 de abril de 2020, a Plataforma de Inteligência Cooperativa com a Atenção Primária à Saúde (Picaps), fruto de uma iniciativa da Fiocruz Brasília e da Universidade de Brasília (UnB), da qual também participam a Secretaria de Saúde do Distrito Federal (SESDF) e movimentos sociais.

Inteligência cooperativa, agenda estratégica, mobilização, persistência, cartografia participativa, economia solidária, escola em rede, educação popular: muitos conceitos e saberes se somaram para dar vida à Picaps, que, hoje, ao completar um ano, demonstra a potência da integração entre diferentes abordagens para enfrentar uma pandemia e apoiar políticas públicas de base territorial. Potência que se traduz tanto na multiplicação de iniciativas locais derivadas da Plataforma, como na possibilidade de que esse modelo de atuação seja adotado, também, em outros estados do país. Nesta entrevista, que inaugura a série “Fala aê, pesquisador”, o coordenador de Integração Estratégica da Fiocruz Brasília, Wagner Martins, conta a trajetória da Picaps e faz um balanço do trabalho realizado até agora.

O que é a Picaps?

Wagner Martins: A Plataforma de Inteligência Cooperativa com a Atenção Primária à Saúde (Picaps) é uma plataforma que articula atores, métodos e ferramentas. Ela é uma abordagem dinâmica de vários atores em uma agenda estratégica de ações para o enfrentamento da Covid-19. Participam da Picaps a Fiocruz Brasília, a Universidade de Brasília (UnB), a Secretaria de Saúde do Distrito Federal (SESDF), o Conselho de Saúde do Distrito Federal, movimentos sociais e várias outras redes que estão sendo mobilizadas.

O conceito de plataforma é muito difundido com a ideia de uma plataforma digital. A Picaps conta também com uma plataforma digital – utilizamos o Microsoft Teams –, porque a interação digital é fundamental neste momento. Mas não é desse conceito somente que estamos tratando. Utilizamos o conceito como a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e também a União Europeia, entendendo plataforma como uma agenda temática, articulada a tecnologias. A nossa agenda – o enfrentamento da Covid-19 – faz com que pessoas, organizações, abordagens e métodos se articulem. A Picaps é também mais do que uma rede, porque, além de articular, ela também fornece uma base para a ação cooperativa.

Ação cooperativa com inteligência cooperativa?

Wagner Martins: Inteligência cooperativa é o conceito orientador do nosso processo de integração. Inteligência é um método científico de coleta de dados, mas é também um atributo individual e uma capacidade social. Essas três concepções de inteligência, conectadas, permitem trabalhar as informações para orientar uma ação. Esse é o sentido da Picaps. Trabalhamos na perspectiva de articular a Atenção Primária em Saúde (APS) com as Vigilâncias (Epidemiológica, Ambiental, Sanitária e Popular). A Vigilância Popular tem um papel muito importante porque envolve as comunidades, em um processo de base territorial.

A Picaps é uma plataforma complexa e foi lançada cerca de um mês e meio após a declaração de pandemia pela Organização Mundial da Saúde (OMS). A que fatores você atribui essa rápida capacidade de resposta?

Wagner Martins: Já havia um movimento instalado da Fiocruz Brasília na direção dos eixos estruturantes da Picaps: inteligência, integração e formação. Desde a ocupação de sua atual sede, no campus da UnB, a Fiocruz Brasília tem se orientado por esses três eixos, o que nos deu condições de agir rapidamente. Há algum tempo desenvolvemos projetos dessa natureza. A Coordenação de Integração Estratégica atuava nessa dinâmica. Já estávamos envolvidos na Plataforma Ágora; já trabalhávamos com vigilância popular por meio do Programa de Promoção da Saúde, Ambiente e Trabalho (PSAT). A gente já vinha desenhando isso. A conexão UnB-Fiocruz nos campos da formação, da ação no território e da transformação digital já era bastante forte. A pandemia trouxe a urgência de acelerar esse processo.

A necessidade de formação de residentes, no contexto da pandemia, foi decisiva para a conformação da Picaps?

Wagner Martins: A suspensão das atividades acadêmicas presenciais, em março do ano passado, foi determinante para que a Picaps saísse do papel. O Colaboratório de Ciência, Tecnologia e Sociedade da Fiocruz Brasília já trabalhava com articulação em rede, integração digital e inteligência cooperativa, inclusive no desenvolvimento da Plataforma Ágora. A partir das experiências acumuladas, foi possível conectar um conjunto de estruturas que faziam fluir informações até chegar aos residentes, na ponta, nas Unidades Básicas de Saúde (UBS), onde eles viviam uma situação completamente nova – não só por estarem ingressando no campo de prática, mas por fazerem isso no início da pandemia de Covid-19, uma situação desconhecida também para os preceptores e para todos.

Que conjunto de estruturas era esse?

Wagner Martins: Nós organizamos um sistema que envolvia o Núcleo de Epidemiologia e Vigilância e Saúde (NEVS/Fiocruz Brasília), em contato com o Centro de Integração de Dados e Conhecimentos para Saúde (Cidacs/Fiocruz Bahia), o Observatório Covid-19 Fiocruz, a Sala de Situação da UnB, a SESDF e o Ministério da Saúde, bem como o Programa de Evidências para Políticas e Tecnologias de Saúde (PEPTS/Fiocruz Brasília), além de um grupo de teleorientação.

Os residentes ficavam conectados ao grupo de teleorientação de forma permanente e contínua. A qualquer momento, eles podiam acionar o teleorientador com uma dúvida a respeito da Covid-19. No início, as dúvidas eram muitas. Qual máscara é mais adequada? Qual produto de limpeza utilizar? Como diferenciar a dengue da Covid-19? Quando o teleorientador não tinha a resposta, ele recorria à nossa área de pesquisa epidemiológica. Se essa área também não tinha a resposta, acionava-se o grupo de busca de evidências em bases de dados internacionais. Dessa forma, era possível oferecer ao residente uma síntese de resposta, informando a ele como seria o seria o melhor manejo de uma situação na UBS, e possibilitando uma tomada de decisão com base nas melhores evidências científicas disponíveis. Esse trabalho, normalmente, é feito em 40 dias, mas conseguimos unir esforços e reduzir o prazo para 24 a 48 horas.

Mas esse atendimento ficou restrito aos alunos de residência?

Wagner Martins: Não. Começou com os residentes, mas foi ampliado. Fizemos uma articulação com a Coordenação de Atenção Primária em Saúde (Coaps/SESDF), à qual estão ligadas as diferentes Diretorias Regionais de Atenção Primária em Saúde (Diraps), que têm suas Unidades Básicas de Saúde (UBS), onde atuam hoje, no total, quase 6 mil trabalhadores de saúde. Assim, a partir da construção do sistema para atender aos residentes, começamos a trabalhar junto com a Coaps e a integrar mais profissionais para que pudessem usar essa estrutura. Estamos falando de uma conexão com virtualmente toda a rede de pesquisadores da Fiocruz, intermediada pelos teleorientadores.

Mas o envio de mensagens com dúvidas foi diminuindo com o passar do tempo, até porque, a partir de um determinado momento, começamos a fazer sistematicamente, dentro da Plataforma, lives temáticas, com especialistas de várias áreas, sobre diversos assuntos ligados à Covid-19. De certa forma, com essa estratégia, foi possível antecipar questões que surgiriam na prática dos serviços de saúde. Passamos também a realizar periodicamente seminários com apresentação de trabalhos implementados em diferentes UBS, muitos deles, depois, replicados em outras Unidades.

A cartografia participativa é um desses trabalhos?

Wagner Martins: Sim. Utilizando o Google Maps, além de marcar os locais de ocorrência de casos de Covid-19, o que dá uma ideia de como a pandemia se movimenta no território, é possível sinalizar também áreas de vulnerabilidade ou situações de ameaça, como, por exemplo, lugares onde acontecem aglomerações. Identifica-se no mapa também onde estão os centros ou organizações que oferecem apoio ou serviços naquela comunidade. Com base em todas essas informações, que só se consegue obter em conjunto com a vigilância popular no território, as equipes da UBS podem definir melhor suas estratégias para o enfrentamento da pandemia.

Para que os residentes e as equipes em que estão inseridos fizessem esse trabalho de cartografia, a teleorientação foi fundamental: houve aulas temáticas, a construção de um manual e todo um processo de interação com eles, além do suporte do núcleo de epidemiologistas, fornecendo as diretrizes do que é risco, o que é ameaça e o que precisa ser mapeado. Para gerar todas as informações necessárias, foi fundamental também a participação das comunidades e seus comitês populares. Assim, essa cartografia é resultado de uma combinação da teleorientação, da inteligência epidemiológica e do Radar de Territórios.

Como funciona o Radar de Territórios?

Wagner Martins: O Radar de Territórios é a Picaps atuando com os movimentos sociais e as lideranças comunitárias, ativando a rede sociotécnica e realizando ações de enfrentamento da Covid-19 no que diz respeito, sobretudo, aos seus impactos sociais e econômicos. Como exemplo dessas ações, criamos com o Banco Comunitário da Estrutural o Fundo de Resiliência Solidária, que está com uma campanha para arrecadar recursos que gerem trabalho e renda para a população local.

Só a sociedade local consegue perceber como a pandemia está acontecendo naquele território, qual a dinâmica da doença, e isso com base na sua cultura, nos seus elementos simbólicos, que são diferentes em cada lugar. Essas informações são incluídas na cartografia. A epidemiologia mais “dura”, mais técnica, sistematiza e disponibiliza dados e indicadores de saúde. O Radar trabalha com uma epidemiologia diferente, uma epidemiologia mais crítica, com os determinantes sociais da saúde, em articulação intersetorial. Por isso falamos em inteligência cooperativa, que articula diferentes saberes para embasar a ação.

 

Como tem sido a mobilização das comunidades?

Wagner Martins: Essa conexão se dá pela necessidade de buscar soluções para os problemas reais que a comunidade enfrenta. Na Estrutural, foi organizado um processo de produção de máscaras e produtos de limpeza, o que também gerava renda para as pessoas. O objetivo é construir um novo modelo de desenvolvimento para a comunidade, que possa gerar uma solidariedade local e um mercado baseado nessa ideia da cooperação. A saúde está conectada com a economia popular e solidária.

Por isso nossa articulação com o Banco Comunitário, que tem uma moeda digital própria, e o Fundo de Resiliência, que arrecada doações em reais e transforma nessa moeda digital, que só circula dentro do território e fortalece a economia local. A saúde é também o modo de vida das pessoas e os determinantes sociais da saúde são fruto da forma como o processo de produção e reprodução da vida ocorre nos territórios.

Participam outras regiões administrativas do Distrito Federal, além da Estrutural?

Wagner Martins: Estamos articulando vários comitês em várias regiões. No Distrito Federal, já há algum tempo, existem as redes sociais locais, fóruns de discussão onde vários serviços se reúnem – educação, saúde, assistência social, justiça, segurança pública etc. Eles se reúnem com as comunidades para discutir os problemas dos serviços locais. A Fiocruz Brasília já organizou encontros dessas redes, que ajudam bastante na integração com os movimentos sociais – as rádios comunitárias, a rede de médicas e médicos populares, os trabalhadores sem terra, os agricultores familiares e vários outros movimentos, ONGs e associações dos territórios. Estamos preparando um encontro distrital popular sobre Covid-19. Fizemos um plano de enfrentamento, junto com o Conselho de Saúde do Distrito Federal, que envolveu todas as regiões, e agora vamos retornar para as comunidades e discutir com elas como traduzir as ideias do plano em uma ação local.

Ao lado do Radar de Territórios, da inteligência epidemiológica e da teleorientação, a Picaps tem ainda um quarto componente: a saúde digital. Como ela se integra à Plataforma?

Wagner Martins: A saúde digital consiste no desenvolvimento de tecnologias digitais para apoiar as estratégias de enfrentamento da Covid-19. São soluções ainda em construção. Uma das encomendas, por exemplo, é um aplicativo que permite o cadastramento de toda a população do Distrito Federal para que o agendamento da vacinação seja automatizado: o usuário se cadastra e, quando chegar a sua vez, ele recebe uma mensagem informando o dia, o horário e o local. Esse projeto envolve também a UnB, a SESDF e o Conselho de Saúde do Distrito Federal, com financiamento da Fundação de Apoio à Pesquisa do Distrito Federal (FAP-DF).

Após um ano de funcionamento da Picaps, quais as principais lições aprendidas?

Wagner Martins: Para construir um projeto em rede complexa, é preciso persistência e constância de propósitos. Persistência porque você precisa conversar com muitos atores, envolvê-los na construção de um projeto cooperativo, e, para isso, tem que haver confluência de uma visão de futuro compartilhada. Nosso propósito é enfrentar a Covid-19 de forma cooperativa; nosso entendimento é de que vencer esta pandemia exige integração de forças e solidariedade.

A experiência no Distrito Federal está nos levando a uma ampliação nacional da Picaps. Temos conversado com universidades que querem estabelecer o modelo de teleorientação para seus residentes. A Picaps tem proporcionado também uma integração dentro da Fiocruz, das áreas de tecnologia da informação (TI), planejamento etc. A articulação com as unidades regionais tem possibilitado a discussão de acordos de cooperação técnica com os estados para a expansão nacional da Plataforma.

Quais os principais resultado da Picaps?

Wagner Martins: Uma maior integração entre as diferentes abordagens do enfrentamento da Covid-19. Estamos percebendo a potência da Plataforma e discutindo com a UnB a possibilidade de transformá-la em um projeto de longo prazo, estratégico para as duas instituições, para enfrentar a Covid-19 e apoiar políticas públicas de base territorial.

A transformação digital está em curso, o que vai nos permitir obter cada vez mais dados, e dados cada vez mais próximos da realidade no território, sendo coletados no território. Estamos trabalhado com a formação de agentes populares de saúde, de pesquisadores populares. Estamos formando pessoas nos territórios para trabalhar com informação. São informações de caráter mais subjetivo, mas que, associadas a dados objetivos do sistema, trazem evidências importantes para a tomada de decisão e maior precisão para as políticas públicas, de modo que melhorem as condições de vida naquele território.

A Picaps fomenta também a educação permanente e continuada, e a conexão entre educação, pesquisa e aplicação do conhecimento na resolução de problemas locais. Uma escola em rede, em que o conhecimento flui dinamicamente na troca de saberes. Aprende-se muito com as comunidades, com as pessoas que estão na lida cotidiana.

Qual o papel da educação popular nessa rede?

Wagner Martins: A educação popular é muito importante na mobilização das pessoas no território. E a gente mantém essa mobilização trazendo mais pessoas para o processo de educação. Fizemos cursos de educadores populares para a saúde e para a economia solidária. O processo de formação é um processo que engaja, mas, se as pessoas se formam e se desconectam, o sentido se perde. É preciso manter a rede ativa com pessoas trabalhando em torno do alcance de um propósito comum. Lá na Estrutural existe um grupo de agentes locais muito ativos, que vieram de um curso de especialização e se engajaram na construção de um projeto de intervenção para o enfrentamento da Covid-19. É fundamental manter esse engajamento com atividades de intervenção na realidade.

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